15/12/2013

Reflexões inéditas de Thompson sobre política, história e o papel dos intelectuais

Edward P. Thompson. Artigo tirado de SinPermiso (aqui) e traduzido por nós desde o castelhano. O autor foi o historiador social mais importante da segunda metade do século XX e um grande renovador da matéria.



Reproduz-se a seguir a versão castelhana de um breve texto inédito de Edward P. Thompson escrito no enquadramento do Programa História e Sociedade da Universidade de Minessota no ano académico 1987-88  com o título informal de "Reflexões sobre Jacoby e todo isso". O working paper circulou fotocopiado entre os estudantes do Programa e parece requisitado como comentário ao então recente bestseller de Russell Jacoby The Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe [Os últimos intelectuais: a cultura norte-americana na idade da academia].

Tem-se-me convidado a dizer algo sobre os relacionamentos entre a escritura, a história e a política conforme à minha própria experiência. [1] Em certo sentido, há pouco que dizer que não resulte óbvio. Ou isso me parece a mim. Um escreve história como historiador e embarca-se na polémica política como cidadão, e uma coisa não exclui à outra. Efetivamente, os dois papéis podem sobrepor-se ou ainda se confundir às vezes, mas também não significa isso que se precise de chegar a grandes compromissos. Os modos de sair airoso do assunto são menos um problema teórico que um problema prático. Eu estou determinadamente na contramão de misturar a docência com qualquer variante de proselitismo político, porque isso é aproveitar-se injustamente de uma posição de vantagem sobre os estudantes. A minha impressão, de todas, todas, é que esse abuso o costuma cometer de maneira flagrante, bem mais que a esquerda, uma direita incautamente habituada a supor que os seus pontos de vista constituem a única ortodoxia possível. Mas isso não deve ser desculpa para que a esquerda se ponha a emular abusos da direita.

Talvez parto deste simples ponto de vista porque o meu pai foi um escritor: um historiador e um polemista em assuntos que tinham que ver com a independência da Índia. De maneira que a forma "normal" de ir trabalhar que eu observei na minha infância consistia em baixar em pantufas ao estudo com uma fumegante xícara de café em mãos. [2] O ruído da máquina de escrever era "trabalho". O meu pai tinha também certo relacionamento contratual a tempo parcial com a Universidade de Oxford, como Leitor de bengali e, depois, como investigador sócio em História da Índia; mas as suas tarefas não eram demasiado exigentes, de maneira que passaria provavelmente pelo filtro da severa definição de "intelectual" de Russell Jacoby. Ele, no entanto, entendia-se a si próprio como "escritor": como poeta, novelista, historiador, jornalista e homem de letras. E quando abria  o correio, esbordava de intermináveis petições para escrever sobre isto, falar sobre isto outro, ler tal manuscrito ou assessorar sobre tal outro (quase sempre de balde), entendia-se também a si mesmo como servus servorum [servo dos servos].

Nos anos em que eu vim desempenhando um papel proeminente no movimento pela paz permitiram-me compreender demasiado bem essa forma de se entender a si próprio. O mundo está cheio de gente encantadora e meritória que, por alguma razão, supõem que um escritor é um servidor público sem goze de salário. Às vezes, a metade ou mais da minha vida laboral destina-se a responder o correio, e a pilha de cartas ainda sem resposta gravita permanentemente sobre a minha mente. Uma parte dessa correspondência faz à manutenção de um bom relacionamento com um público, mas esse público também pode ser irreflexivamente exigente. A Catch-22 do assunto é que um nunca chega a conhecer os corresponsais delicados, precisamente porque têm demasiado tato como para te inundar com cartas.

Baste isso como prólogo. Ficam por acrescentar tão só alguns breves detalhes biográficos. Quando era jovem, eu supunha que poderia chegar a ser um Escritor (com maiúscula). O meu primeiro emprego foi de tutor extramuros, cargo que desempenhei 17 anos em West Yorkshire para a Universidade de Leeds: tratava-se de tutorias externas na educação de adultos. Voltarei sobre isso. Eu me fiz historiador nessa época escrevendo os meus livros sobre William Morris e sobre A formação da classe operária na Inglaterra. [3] Dorothy (a minha mulher) e eu andávamos muito metidos no ativismo político: o momento culminante foi o feroz conflito dentro (e, depois, fora) do Partido Comunista (1956) e a formação e o trabalho editorial para The New Reasoner e a New Left Review. O meu seguinte posto de trabalho foi já dentro de uma universidade, a recentemente fundada Universidade de Warwick: só me durou seis anos, mas uma das suas recompensas foi a formação de um excelente centro de graduados, especialmente forte no estudo da história social inglesa do século XVIII. Depois demiti (1971) para poder escrever, oportunidade que me brindava Dorothy, quem (com os garotos já um pouco crescidos) conseguiu tardiamente entrar no ensino universitário, o que significava o rendimento de um salário académico regular na família. A minha liberdade para ser um intelectual dependia disso, e talvez Jacoby presta pouca atenção a este tipo de assuntos materiais garbanceiros. Escrever seriamente por conta própria não proporciona um sustento. De vez em quando, nas duas últimas décadas, recarregámos a nossa conta bancária e também os nossos recursos intelectuais aceitando a amável hospitalidade de universidades norte-americanas, canadianas e outras para ensinar ocasionalmente ou durante cursos inteiros. De maneira que eu sou médio intelectual e médio académico. A minha vida de escritor académico viu-se interferida -e repetidamente adiada- pelas exigências da publicística política polémica: primeiro, em defesa de liberdades civis como a integridade do sistema de júris populares e em oposição ao autoritarismo crescente em Grã-Bretanha; e depois, em representação do movimento pela paz. Se há que distinguir entre o escritor de história e o escritor político, então o historiador que há em mim lamenta muito nos anos desperdiçados em política: e nunca mais que agora, quando me acho rodeado de obra inacabada e demasiado pouco tempo por diante. Mas, como cidadão, não tenho por que desculpar com o historiador.

Voltemos a Russell Jacoby, embora suponho que já vos fizeram uma ideia suficiente da sua posição durante o seminário. A mim, em general, gosto do seu livro. Com uma prosa viva e abundância de exemplos, apresenta à cultura académica, não como uma solução, senão como um problema. Talvez gosto do livro porque eu mesmo vim sustentando teses parecidas durante anos. Em uma discussão sobre o papel da universidade na educação de adultos, escrevi (em 1968) o que segue:
 
A cultura educada superior não está já isolada da cultura popular conforme às velhas fronteiras de classe: mas segue estando isolada dentro dos seus próprios muros de autoestima intelectual e soberba espiritual. Há, folga dizê-lo, mais gentes que nunca que atravessam os muros e entram. Mas é um gravíssimo erro -em que apenas podem cair quem olham a universidade desde fora- supor que, dentro dos muros, se acham ardentes protagonistas (...) de valores intelectuais e culturais. Na boa classe de adultos, a crítica da vida leva-se ao trabalho ou ao objeto de estudo. É natural que isto resulte menos comum entre os estudantes universitários correntes; e boa parte do trabalho do professor universitário é do tipo de um carniceiro intelectual: pesar e medir programas de estudo, listas de leituras ou temas de ensaio em pós do treinamento profissional que se pretende. O perigo é que esse tipo de necessária tecnologia profissional se confunda com a autoridade intelectual: e que as universidades -apresentando-se a si mesmas como sindicato de todos os "experientes" em todos os ramos do conhecimento- expropriem ao povo a sua identidade intelectual. E nisso se vêem secundadas pelos grandes meios centralizados de comunicação -assinaladamente, pela televisão-, que costumam apresentar ao académico (ou talvez deveria falar de certos académicos fotogénicos?), não como um profissional especializado, senão, precisamente nesse sentido, como um verdadeiro "experiente" na Vida.  ("Education and Experience", págs. 21-22)

Esta não é exatamente a mesma queixa que a de Jacoby, porque o que a ele lhe preocupa é a incapacidade dos académicos para se projetar como intelectuais públicos, enquanto o que a mim me preocupava era a expropiação da vida intelectual da nação por parte das universidades. Mas ambos estamos radicalmente interessados no intercâmbio, no diálogo entre a academia e o público. No entanto, Jacoby apresenta o problema de maneira demasiado fácil. Apesar das salvedades, o seu livro parece apresentar um auto-isolamento voluntário em que os intelectuais comprometidos terminaram optando pelo progresso profissional no quadro dos mefíticos vocabulários das carreiras académicas. É verdade que isso se dá agora, como se deu no passado. Em momentos materialistas e vazios de heroísmo isso deu-se já antes. Mas seguramente não é senão a metade do processo. Jacoby não se molesta em inquirir para além, em indagar nas razões "estruturais" do auto-isolamento de uma categoria de intelectuais: não se pergunta se esse isolamento e esse auto-encarceramento com gíria auto-promocional é consequência não menos que causa. Não será que os relacionamentos políticos e intelectuais entre os intelectuais e o grande público se viram interrompidas por mudanças nas tecnologias da comunicação, ou talvez que, como consequência de ulteriores mudanças políticas e ideológicos, os intelectuais se ficaram falando consigo mesmos ou sem ter muito que dizer que seja de interesse geral?

Chegados a este ponto, eu convidar-lhes-ia a vocês a jogar uma vista de olhos a dois artigos meus que entravam nesse problema desde diferentes ângulos. O primeiro, "The Segregation of Dissent" [A segregação do dissenso], foi escrito para a BBC e finalmente recusado por ela em 1961; terminou publicando-se em um pequeno jornal estudantil publicado em Oxford, The New University. [6] O destino final da sua publicação parecia a ilustração do seu argumento. O segundo, "The Heavy Dancers" [Os bailarinos grávidos] vinha a ser, em verdadeiro modo, uma reelaboração do argumento do primeiro, mas no contexto farto mais autoritário que se dava vinte anos depois. [7] Foi um encarrego de uma unidade de produção algo ousada de uma TV comercial que trabalhava para o ocasionalmente intelectual Chanel Four. Mas a iniciativa não era tão ousada, nem muito menos, porque o nervo sensível da minha conversa -que tinha que ver com a Guerra das Malvinas- já era largamente enervado pela vitória da Senhora Thatcher. Durante essa guerra, ainda que todas as sondagens de opinião arrojavam entre um 20% e um 25% da população contrária à guerra, a apresentação televisiva ou radiofónica de argumentação anti-bélica resultaria impossível. Limito-me a sublinhar ante vocês a obviedade de que há razões estruturais e políticas para o isolamento dos intelectuais (se são dissidentes). O que resulta especialmente óbvio na Grã-Bretanha das passadas décadas, com o constantemente crescente autoritarismo, a absurda obsessão governamental com a pseudoseguridade, a cumplicidade do poder judicial e a imprensa popular decadente. Há, desde depois, e digo-o comprazido, verdadeiro movimento de resistência entre os próprios profissionais dos meios de comunicação -assinaladamente, na televisão-, mas a Senhora Thatcher já se está a ocupar disso.

A mim parece-me que algo similar veio ocorrendo nos EUA desde o final da II Guerra Mundial. Na revista Tri-Quaterly (nº 70) esbocei uma espécie de biografia intelectual do vosso distinto compatriota de Mineápolis, o poeta Thomas MGrath, comparando com um movimento de resistência desenvolvido através de "samizdat" compostos com pequenas resenhas. [8] Agora mesmo, este distinto intelectual encontra-se marginado da vida académica norte-americana: a sua obra não figura nos programas de estudo, nem se discute na New York Review of Books. Não será que os argumentos de Jacoby são circulares e auto-confirmatórios? Não menciona a McGrath, provavelmente porque não ouviu falar dele. E quantos intelectuais terá que resultem invisíveis pelas mesmas razões? Enviei um manuscrito do meu estudo sobre McGrath a esse fino historiador literário que foi o último Warren Susman. A sua resposta resultou-me estimulante. Mas em uma questão dissentia vigorosamente. A cultura de resistência dos pequenos periódicos samizdat por todos os EUA deveria considerar-se tão "típica" das décadas recentes como a cultura "oficial" da academia e a New York Review of Books. "Para o historiador cultural", sustentava Susman, "os factos culturais importantes são tanto a tipicidade como a especificidade única de McGrath".

Eu não sê como brigar com este problema. Dou todo o meu apoio ao labor das revistas minoritárias, e não saberia nem contar as horas, dias, semanas, meses e anos da minha vida dedicados à edição de, à colaboração com e ao financiamento desse tipo de publicações, desde Our Time até o New Reasoner, desde a New Left Review até, hoje mesmo, o END Journal. Mas por importantes que sejam estas publicações, não resolvem por si próprias o problema da comunicação com um público mais amplo. Precisam-se certos mecanismos de transmissão ou de mediação. Quando conheci a Wright Mills nos primeiros dias da New Left Review, andava muito preocupado por este problema. Achava poder encontrar uma solução com o pequeno livro de peto, e construiu uma particular aliança amistosa com Ian Ballantine, de Ballantine Books, quem planeou pôr essa ideia por obra servindo-se de máquinas expendedoras de librinhos de peto nas grandes superfícies comerciais ao longo dos EUA: poderia chegar a vender até 20.000 instâncias da cada livro, ainda se se limitasse a oferecer uma coberta sobre um caderno de páginas em branco. (Eu suspeito que se chegasse a pôr isso em prática com demasiada frequência, as suas máquinas seria sabotadas.) [O livro de Wright Mills] Escuta Yanky foi escrito para esse tipo de audiência de Ballantine, e (a primeira versão de) A imaginação sociológica, bem como As causas da III Guerra Mundial, pensavam em uma audiência similar. [9] Lembrança claramente ter discutido sobretudo isso com Mills e Ballantine em uma finca rural de uma montanha galesa, e eu, desde depois, via a edição  do livro de peto como um médio "de massas", como uma resposta à TV e à imprensa popular. O problema não é só que os produtos intelectuais ou políticos competem pobremente quando compartilham saída comercial com o sensacionalismo, a pornografia ligeira, a novelinha de ocasião ou ainda os scripts para computadores, senão que, na tentativa dos converter em competidores efetivos, podem diluir-se as suas qualidades intelectuais. Admirei muito -e sigo admirando- o exemplo de Wright Mills. Mas pensava que Escuta Yanky resultaria mais eficaz, se não fosse escrito em telegrafes; que A imaginação sociológica apresentava um argumento demasiado facilão; e que As causas da III Guerra Mundial -que tenho relido recentemente- arruinava os efeitos de algumas visões de notável penetração (que resistiram o passo do tempo) ao envolver em um formato argumentativo pobremente servido por uma prosa assertiva e exclamatória. A popularização é um tipo especializado de escritura para o que poucos estão dotados, e se um pensador populariza as suas próprias ideias, pode terminar sem outro resultado que o da sua desvalorização.

O que possa fornecer um médio de transmissão das crias dissidentes talvez não seja uma solução técnica -um jornal popular ou uma máquina expendedora de librinhos de peto-, senão um movimento político, religioso, nacionalista ou do tipo que seja. Sim, será galinha ou será ovo, mas com frequência galinha e ovo aparecem juntos: as ideias se popularizam e difundem-se rapidamente, porque: a) a opinião pública já está preparada para as receber; e b) certa excitação pública junta às gentes em associações, clubes, exércitos ou entusiasmos religiosos, nos que as ideias se debatem rapidamente. As ideias radicais podem manter-se dormidas por décadas, derrotadas pela aniquiladora propaganda do statu quo; mas podem-se mudar as circunstâncias de maneira que apontem a uma nova oportunidade, se aparecem razões para a esperança, então as ideias radicais podem florescer imediatamente e por toda a parte. (Ainda que os primeiros 18 meses de reformas do Sr. Gorbachov viram-se com suspeita e cautela, eu acho que na União Soviética pode se apreciar agora em ação essa esperança que é sempre uma potente força histórica.)

[Esta linha falta na cópia mimeografiada do manuscrito de Thompson que se está a usar para a tradução] ... durante o New Deal, as preocupações do comum e o discurso do comum difundiram-se por todos os EUA; em Grã-Bretanha, uma parte do público chegou a organizar em clubes de empréstimo de livros. A fins dos 50, fenómenos similares levaram à fundação da New Left Review (NLR). Durante um breve período (talvez entre 1961 e 1963) tivemos 20 ou mais clubes da NLR nos grandes centros urbanos: serviam como correios primeiramente e saída da revista e como locais de irradiação para iniciativas políticas locais. Tratava-se tanto de uma correia de transmissão como de uma audiência com uma identidade conhecida: a secção final do livro de Raymond Williams The Long Revolution [10] dirigia-se talvez a essa audiência, o mesmo que (certas partes de) o meu livro A formação da classe operária na Inglaterra. Mas prestar serviço a esses clubes representava uma pesada carga para o nosso desbordado comité editorial, que funcionava em parte como assessor e em parte como organizador de um novo movimento de esquerda. Alguns membros do comité sentiam que a sua intervenção no movimento resultava incompatível com uma atividade intelectualmente congruente da revista, e vários jovens e brilhantes colegas terminaram (a resultas de outras dificuldades) por fazer com o controlo da revista e cortaram de todos os vínculos com os (deteriorados) clubes, deixando inclusive de mencionar nos créditos da revista e purgando ao comité editorial de todos os membros conectados com o movimento (incluído o mineiro que depois terminaria sendo secretário geral da União Nacional de Trabalhadores Mineiros!).

Menciono tudo isto, não por jogar gárrulamente a língua a pacer, senão porque guarda relacionamento com a questão das audiências e as mudanças registadas nas últimas décadas. Porque se nos vossos andeis conservam a coleção da New Left Review (NLR), podem examinar todos os números. O estilo da revista mudou ao cabo de dois ou três números. Em vez de dirigir a uma audiência ativista, com o seu correspondente retórica e, às vezes, sensibelaria, a NLR começou a afetar um tom e um formato de rigor, claramente dirigido à academia. A sua circulação provavelmente caiu, mas converteu-se em uma publicação internacional e as bibliotecas universitárias chegaram a considerá-la de tão obrigatória presença como Past&Present ou a Economic History Review. Conseguiu evitar o colapso e consolidar-se com uma notável consistência durante vinte e cinco anos, desenvolvendo e definindo uma teoria socialista da academia. A sua audiência -e o seu sentido dos relacionamentos com a audiência- é de todo ponto diferente da da vossa New Masses e da da nossa Left Review de fins dos 30. A sua trajetória pareceria confirmar e ilustrar, com certos respeitos, a tese de Jacoby. Mas deveríamos acrescentar também que a história ainda contínua. Se a NLR foi um laboratório académico, ainda é possível que as suas inovações e a sua influência cheguem a ser potentes na década vindoura. Eu não estou seguro de que isso termine de me gostar. Como tantas outras coisas que nos circundam por todas partes, a NLR é o produto de uma era excessivamente cerebral e pouco criativa. [11]

O movimento feminista e o movimento pela paz também proporcionaram as suas próprias correias de transmissão para livros e ideias. O primeiro parece ter conseguido uma audiência substantiva e permanente. O segundo foi mais volátil e vai-se visto submetido aos ventos da moda. Muito notavelmente nos EUA, com as subitáneas alças e baixas da audiência do Freeze, que se podem ilustrar com o sensacional sucesso do livro de Schell Fate of the Earth. [12] (Dito seja de passagem: por que não conta Jonathan Schell entre os "intelectuais" de Jacoby?) Eu observei oscilações parecidas em Grã-Bretanha. A formação do nosso movimento constituiu um exemplo notável do uso de instrumentos e meios de comunicação pré-modernos para irromper em um "consenso" manipulado ou indiferente ou hostil. Servimo-nos do panfleto, da folha voandeira semanal, da reunião na freguesia ou na escola, da manifestação de rua ou do piquete, e com efeitos tais, que, para 1981, as nossas manifestações chegaram a ser o bastante numerosas e coloridas como para que os meios de comunicação maioritários não pudessem segui-las ignorando como se não existissem. Os esforços e as horas de trabalho voluntário foram um prodígio dificilmente mantível durante mais de dois ou três anos com esse grau de intensidade. Chegamos a irromper na TV e (com feias distorções) na pior imprensa sensacionalista popular. Nem que dizer tem que ao preço de perder o controlo direto na forma de presentar os nossos argumentos quando parecia que estes triunfavam: as nossas vozes passaram a outros (comentaristas políticos, animadores mediáticos, locutores) que propunham as suas questões, não as nossas. Como é característico na Grã-Bretanha, toda a complexidade das nossas propostas ficava reduzida a só duas questões: a favor ou na contramão do "unilateralismo", e "unilateralismo" ao modo em que eles, não nós, o definiam; e -prescindindo diretamente da nossa política de não alinhamento e dos nossos múltiplos contactos com  os "dissidentes" do outro lado- a favor ou na contramão das políticas soviéticas. Dada a capacidade dos meios de comunicação maioritários para falsificar e manipular, um se pergunta se não fariamos melhor seguindo ignorados.

A todo isso, disse mais bem pouco sobre a minha própria prática como escritor político e historiógrafo. Como soltei ao começo, tenho pouco que dizer que não resulte evidente; e se passei por alto questões significativas, perguntem-me. Uma coisa foi importante para mim e para alguns dos meus colegas. O meu primeiro emprego -que durou 17 anos- foi na educação para adultos. Eram tempos -imediatamente após a Guerra- nos que o movimento era vigoroso e contava com um amplo apoio popular. As classes estavam organizadas pela Associação de Trabalhadores da Educação, mas os cursos mais longos e formais conduziam-nos tutores extramuros da universidade ou extensões dos departamentos universitários. Essas classes duravam normalmente três invernos de 14 sessões a cada um, complementadas com escolas de verão; os estudantes embarcavam-se nesta considerável tarefa (e a maioria, a plena satisfação) com o único propósito da instrução própria: não tinha grau ou diploma ao final, e raramente um incentivo vocacional direto. O grosso dos cursos versava sobre humanidades ou ciências sociais (teoria económica, assuntos internacionais, história, literatura, música). Em uma boa classe tutorial de educação para adultos tinha um diálogo real entre o tutor e os estudantes, e um jovem tutor como eu mesmo tinha que enfrentar essa classe com humildade antes de adquirir experiência. (Na minha primeira classe em uma aldeia mineira do Yorkshire meridional resultou-me evidente desde as primeiras semanas que não poderia me ganhar o respeito da classe até que não baixasse com eles ao poço local da mina.)

Isso era muito diferente do ensino universitário externo. Por um lado, os estudantes tinham pouco tempo para ler o suficiente, e o que atingiam a ler eram livros, mais que artigos académicos especializados. (Era-a da fotocópia barata ainda não chegava, e não dispúnhamos de revistas académicas encadernadas em volumes nos nossos andeis.) Poucos eram capazes de escrever ensaios sérios. Mas, por outro lado, o tutor esforçava-se para expor ante a classe, tão clara e ecuanimemente como lhe fosse possível, o estado dos conhecimentos, exposição à que costumava seguir um tempo de discussão de outra hora na que os membros da classe interrogavam ao tutor, introduziam a sua própria experiência -com frequência, pertinentemente-, e baixo essa luz, avançavam os seus próprios julgamentos. Às vezes, em uma classe de história, esses julgamentos estavam insuficientemente informados, mas na classe de literatura -eu ensinava ambas coisas por igual: outra vantagem da educação para adultos- a experiência do estudante resultava superior à do tutor, o que resultava francamente gratificante.

Esta experiência da educação para adultos influiu desde depois em uma tradição da história social na Inglaterra. R.H. Tawney foi um pioneiro das classes de educação tutorial. Não sê se os Hammond participaram nisso também, mas os seus livros soam como se o tivessem feito. [13] A coisa não oferece dúvida: essa experiência influiu no meu sentido da audiência ao escrever história. O meu William Morris e A formação da classe operária na Inglaterra escreveram-se com uma audiência na cabeça composta por uma classe para adultos ou por ativistas políticos. Pouco que ver com uma audiência universitária interna. De aqui o meu descuro do protocolo académico (do que mal conhecia a etiqueta). cheguei a apreciar a diferença depois. A boa receção da formação converteu-me em alvo da crítica académica, de maneira que na minha atividade literária das duas ultimas décadas tive em mente também a essa audiência crítica. Isso fez a minha obra mais lenta e mais auto-consciente; mais cautelosa no julgamento; mais puntilhosa em relacionamento com o aparelho académico. Talvez a obra ganhou em perícia profissional, mas também perdeu em outros respeitos.
 
Perdeu, sobretudo, o sentido do diálogo com um público. E pode que isso seja inevitável, devido ao isolamento estrutural e ao auto-isolamento da academia. Fez-se mais difícil conjugar academia e público general não especializado. E nisso todas as partes perdem: os escritores, a audiência do público e a academia. Porque a educação de adultos oferecia não só uma saída à universidade, senão também um rendimento de experiência e de crítica. Nesse diálogo, apareciam novas disciplinas e ensaiavam-se experimentos: por exemplo, determinada história económica e social local, determinados temas sociológicos e culturais. E os professores viam-se obrigados a evitar a gíria profissional introvertida e a dar prioridade à difícil tarefa da comunicação. Este diálogo e este "rendimento" de experiência é profundamente necessário para a saúde intelectual da própria academia. Na sua ausência, proliferam os escolasticismos e a vida intelectual do público vê-se confiscada por quem têm uma disposição profissional a teorizar que os membros da elite intelectual (isto é, eles mesmos) são os únicos agentes livres da história, sendo todos os demais meros prisioneiros de estruturas ou de determinações (concetuais, ou de outro tipo) que lhes reduzem a não ser outra coisa que inimigos da intelectualidade ou cúmplices dos seus victimários. Não é só que isso seja falso; é que é um erro carregado de consequências. Aceita, em nome de uma teoria supostamente elevada, nossa fraturada vida intelectual; e reproduz as alienações. Mas essa é já outra história.


[1] Manteve-se a ortografia original do manuscrito. As palavras e os cabeçalho sublinhados converteram-se em itálico. Todas as notas a rodapé são de Carlos Aguirre.   

[2] Sobre Edward John Thompson (1886-1946), veja-se E.P. Thompson, Alien Homage. Edward Thompson and Rabindranath Tagore (Delhi: Oxford University Press, 1993) e Mary Lago, “India’s Prisoner.” A Biography of Edward John Thompson, 1886-1946 (Columbia: University of Missouri Press, 2001), assim como Scott Hamilton, The Crisis of Theory. E.P. Thompson, the new left and postwar British politics (Manchester: Manchester University Press, 2012), págs. 11-21  

[3] William Morris: Romantic to Revolutionary (London: Lawrence & Wishart, 1955) [Tradução castelhana em Editorial Destino de Barcelona]; The Making of the English Working Class (London: Victor Gollancz, 1963) [Nova edição castelhana recente, comemorativa do cinquentenário, na editorial madrilena Capitán Swing, com prólogo de Antoni Domènech.]  

[4] Dorothy Thompson (1923-2011), a mulher de Edward, foi uma historiadora social, autora, entre outras obras, de: TheChartists: Popular Politics in the Industrial Revolution (New York: Pantheon Books, 1984). Sobre a relação de Thompson (e outros historiadores) com o Partido Comunista britânico, veja-se: Harvey J. Kaye, The British Marxist Historians. An Introductory Analysis( New York:Polity Press, 1984).  

[5] E.P. Thompson, “Education and Experience: Fifth Mansbridge Memorial Lecture” (Leeds 1968), págs. 21-22. Este textinho incluiu-se num livro póstumo The Romantics: England in a Revolutionary Age (New York: The New Press, 1997), 4-32.   

[6] New University, 6, 1961, 13-16, reproduzido em Writing by Candlelight (London: The Merlin Press, 1980), 1-10 

[7]The Heavy Dancers of the Air”, New Society, 11, Novembro 1982, 243-7, reproduzido em The Heavy Dancers  (London: The Merlin Press, 1985), 1-11 

[8] E.P. Thompson, “Homage to Thomas McGrath,” TriQuarterly, 70 (Primavera 1987), 116-17.  

[9] C. Wright Mills, Listen Yankee: The Revolution in Cuba (New York: Ballantine Books, 1960); The Sociological Imagination (New York: Oxford University Press, 1959); The Causes of World War Three (London: Secker & Warburg, 1958).  

[10] Raymond Williams, The Long Revolution (London: Chato and Windus, 1961). 

[11] A história da New Left Review foi estudada por Duncan Thompson em: Pessimism of the Intellect?: A History of the New Left Review (London: Merlin Press, 2006). 

[12] Jonathan Schell,  The Fate of the Earth (New York: Knopf, 1982). EPT faz referência aqui ao movimento “Freeze” contra as armas nucleares. Veja-se ao respeito: Alexander Cockburn e James Ridgeway, “The Freeze Movement versus Reagan,” New Left Review, 137, Enero-Febrero 1983. 

 [13] Thompson refere-se a John Lawrence e Barbara Hammond, autores de numerosos e muito influentes livros de história social durante as três primeiras décadas do século XX. Veja-se ao respeito: Stewart Angas Weaver,  The Hammonds: A Marriage in History (Stanford: Stanford University Press, 1998).

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